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Só se vê bem



Só se vê bem…

Durante uma consulta no oftalmologista, ou oculista, como era chamado antigamente, "enxerguei" muitas coisas.

A princípio, ora mal, ora médio, ora melhor, vi aquelas letras de todos os tamanhos projetadas na parede.

Acho que nesse cineminha teste de alfabetização ocular, consegui passar, passando para uma mesma receita de óculos.

Depois disso fui para uma sala fazer outros testes em outras máquinas.

Uma delas dá um tipo de soprinho nos olhos. A outra mostra a imagem de uma paisagem com uma pequena casa desfocada, que vai aparecendo aos poucos.

É bom quando coseguimos ver a imagem da casinha. Não sei pra que serve, mas é bonitinha.

Dá uma sensação de que podemos ver as coisas mais alegres, com uma visão lúdica.

Já na outra máquina, fico tensa na hora do sopro nos olhos e, de um jeito quase infantil, me assusto.

Uma bobagem que faz o médico achar graça.

Sou assustada como os gatos.

Me assusto até com o pão quando pula da torradeira, eu… e o gato.

Dessa vez fiquei preparada. Fui esperta e não me assustei.

Perdeu até a graça.

Vai ver que foi a partir daí que começou a minha maturidade nessa consulta.

Saindo dessa sala, que me fez crescer nesse universo ocular, fui convidada para uma experiência em outra máquina.

Acerta o queixo pra lá, pra cá, vira um pouquinho, um pouquinho mais e…

Escuto no final disso tudo: 

"Você está cheia de catarata".

Retomando minha visão de imaturidade, pensei: será possível ter essas maravilhas da natureza dentro dos olhos?

Nunca fui ver as do Iguaçu, nem tampouco as do Niagara, entre tantas outras, mas tenho as minhas próprias para admiração.

Tentando amenizar essa "agradável" informação, perguntei para o médico: 

"Por que essas belas cachoeiras se instalaram dentro dos meus olhos, haja vista que prefiro vê-las fora deles?"

E ele respondeu: 

"Coisa da idade."

Fiquei pensando…

Seria melhor ter assustado no soprinho dos olhos. Talvez as cataratas não aparecessem nessa outra máquina etarista.

Aí, foi a vez do meu marido passar pela consulta.

No cineminha das letras, errou bastante.

Nas outras máquinas, viu a paisagem sem o meu entusiasmo, não assustou na outra.

Foi gente grande.

Fiquei esperando também para ver como seria o teste na máquina que vê as iguacús nos olhos.

Pra falar a verdade, torci pra que eu não estivesse sozinha nisso.

Quando terminou, o médico disse: "Está também com cataratas".

Ufa, senti um alívio.

Aí, resolvi perguntar com uma certeza ignorante, e de certa forma esperançosa: "ele tem mais do que eu?"

Mas, o médico disse firmemente: 

"Não. Ele tem menos".

Fiquei sem enxergar isso direito.

Como assim, se ele é mais velho?

Ainda com dúvida, não querendo ver essa realidade, perguntei:

"Isso não seria genético?"

E o médico realisticamente responde:

"Não. Isso é coisa da idade".

Nisso, meu marido, talvez querendo me agradar ou ser gentil, pergunta:

"Afinal, sou um pouquinho mais velho e ela tem mais paisagens à vista?"

E, mais uma vez, o médico responde como as águas constantes das cataratas, caindo sobre mim:

"Não. Isso é coisa da idade."

Que idade é essa afinal?

Coisa que não faz muito sentido.

Dentro desses aspectos, decidi fazer mais uma pergunta nesse contexto, me mostrando uma boa pupila, já sabendo a resposta assertiva desse aprendizado:

"Doutor, o formato dos meus olhos parecem um pouco diferentes do que já foram. Seria isso coisa da idade?"

"Sim". Respondeu ele.

Em meio às tantas perguntas e respostas assertivas, com o intuito de buscar a jovialidade nessa velha história de idade, também perguntei se ele sabia por que as pessoas costumam dizer que têm olhos de águia.

"Seriam as águias os animais que melhor vêem?"

E ele, disse:

"Não sei responder."

Yes!

Consegui deixar uma dúvida dentre suas certezas de águia.

Também elogiamos sua aparência, depois de perguntar sua idade. 

Mas, ele disse:  "Talvez vocês não estejam enxergando muito bem."

Que bom! Conseguiu rir sem precisar ver meu sustinho naquela máquina ou talvez porque estaria fechando o consultório, ficando apenas com suas aulas voluntárias na universidade.

Aposentando, sem deixar de trabalhar.

Coisa da idade.

Finalizando nossa consulta, ele prescreveu a receita dos novos óculos para meu marido e acrescentou: "sua visão é excelente!"

Como assim? Pensei.

O sujeito não fica sem os óculos. Quase em todos os momentos, eles são seus melhores companheiros. Até dorme de óculos. E quando não está com eles, não lembra onde deixou. Com seus tantos óculos, nem a si mesmo consegue enxergar.

Nisso, um tanto inconformada, disse a ele que quase não usava meus óculos, só quando necessário, pra colocar linha na agulha, ou pra ver TV, por exemplo.

Mas, sobre isso, para mim ficou apenas o silencioso: "coisa da idade" gritando diante dos meus olhos com paisagens de cachoeiras.

Também disse que eu não precisava de nova prescrição para os óculos, pois deveria ficar com a velha receita.

Isso seria coisa da idade, dele?

Dentre toda essa história, entre cascatas e cataratas, só sei que cada vez mais vejo que a idade é uma coisa que enxergamos melhor sem a cegueira desse ponto de vista: "coisa da idade".

Muitas vezes esqueço a minha.

Coisa da idade?

A partir dessa ótica, sei que ver a idade de todas as idades é olhar a visão e a perspectiva dos sonhos, mesmo vistos apenas em sonhos.

Fazer sorrir e enxergar a vida com mais foco, com cataratas de novas cores, sob a névoa que encobre os velhos olhos. 

Só se vê bem com a inspiração da alma de uma criança, de um pequeno príncipe.

O essencial é invisível aos olhos.








Comentários

  1. Simplesmente maravilhoso! Fico sem palavras.

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    1. Obrigada querida Cláudia! Seu comentário é maravilhoso e especial para mim!

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  2. Uma visão poética da nossa visao
    pregando peças sem pedir licença !
    Coisas da idade!!!😂

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    1. Obrigada querida irmã! Sua visão também sempre poética é coisa sem idade.

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  3. Kkkk...muito bom...bem parecido com a última consulta que eu e Hélio fizemos juntos no oftalmo....eu com catarata ( fiquei chocada) e ele com uma visão maravilhosa ...enfim...coisas da idade,né ?

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    1. Obrigada Lú! Obrigada por voltar aqui. Que bom poder compartilhar as mesmas coisas da idade.kkk

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  4. Genial ! Morri de rir! Que olhar patético ( no sentido de Comovente, que desperta piedade, dor ou compaixão. Patético do grego pathos, que significa emoção intensa.
    E que olhar poético das asperezas e cataratas da vida !

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    1. Obrigada Elvira querida! Muito bom fazer vc rir. Seu comentário é muito pertinente. As questões do etarismo despertam mesmo tais sentimentos, rir ou chorar. É patético, como vc diz, trazendo as emoções em cataratas.

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  5. Adorei como você transformou algo cotidiano em poesia! A maneira leve e humorada de falar sobre coisas da idade mostra que o essencial mesmo é enxergar a vida com olhos de criança. Sensível, inteligente e cheio de verdade!
    (Edilson Navas)

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    1. Obrigada Edilson! Me sinto honrada com seu comentário! Sua visão vai além das palavras.
      Só se vê bem, ainda melhor, com essa sensibilidade.

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  6. Que bom que gostou! É fácil admirar quando vem de alguém com uma visão tão especial como a sua. Continue nos presenteando com seus textos!
    (Edilson Navas)

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  7. FABIO DE FREITAS ROSA7 de abril de 2025 às 13:11

    Me sinto privilegiado pois acompanho a construção do texto: os rascunhos, os silêncios entre uma frase e outra, as pequenas dúvidas e, principalmente, as grandes certezas. Vibro junto, antes de cada publicação — e talvez por isso cada parágrafo me toque de um jeito ainda mais especial. Tudo aqui nasce de sua vivência, e isso faz toda a diferença. Ao ler os comentários, vejo reflexos do que também senti. Poderia tranquilamente fazer minhas as palavras de todos que passaram por aqui e se emocionaram.

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    1. Obrigada Fabio! Você vê antes, com a atenção e o respeito que as palavras merecem. Isso faz toda a diferença. Ter alguém ao lado que entende o processo, que vibra sugerindo sem conduzir. E ler que as suas impressões são também as mesmas dos outros leitores dá a medida exata de que o que nasce da vivência encontra mesmo quem o sinta de verdade. Obrigada por estar tão perto, quando tudo está no rascunho, ainda sendo passado a limpo. Isso é presente raro.

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  8. Querida Érica, eu adorei a sua história de visita no oftalmologista, me tocou muito porque você sabe falar de nossos receios e de nosso medo de envelhecer com poesia e delicadeza!

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    1. Obrigada querida Sylvie!
      Seu olhar e sensibilidade também são poesia. Vc é muito especial.

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  9. Que privilégio ver a vida com cataratas no olhar 😍 Lembrei-me de uma história da Joana, que uma vez me disse que tinha entrado um cisney no seu olho 🦢 Que pisaamos seguir assim, vendo a beleza dos instantes. Você nos inspira! Beijos, Nana

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    1. Obrigada querida Nana! Que maravilha essa história! Imaginei as cataratas com cisnes. Elas ficariam mais bonitas.
      Os olhos de uma criança conseguem ver melhor aquilo que muitas vezes esquecemos de enxergar. Tudo nos inspira quando temos o privilégio de ter pessoas lindas para compartilhar os instantes!

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